segunda-feira, novembro 27, 2017

- o carteiro -

Pois é... pois é... Um destes dias estava a falar com alguém que, no seguimento daquela conversa, me disse "as relações amorosas são muito complicadas". Ao que eu pensei "mas toda a gente quer ter uma!". Milhares de anos de homo sapiens e continuamos a consultar os astros, as cartas, as borras de café e os amigos para percebermos um pouco do que é o amor. Nem sempre foi assim. Nem sempre o amor teve a importância que tem hoje. Todos o sentiram, com ou sem mensagens no telemóvel, com ou sem casamento, com ou sem postais ilustrados. Mas ele não era condição sine qua non para uma relação. Aliás, o amor e a paixão estavam fora dessa instituição onde sobressaíam interesses económicos e relações de poder, que era o casamento.

O amor - com acções que hoje consideramos serem dignas de aplicadas ao amor - surgiu na Idade Média germânica, onde a mulher gozava de outro estatuto, e no seguimento do culto da Virgem (que dava à mulher outros papéis que não somente o de procriadora. Acredite-se ou não, o culto do Virgem fez alguma coisa pelas mulheres, numa altura em que o papel delas na sociedade romana tinha sido esquecido). E foi a cavalaria que proporcionou essa veneração - não respeito nem paixão, mas veneração, o que é diferente - pelas mulheres. As mulheres da Idade Média viviam oprimidas pelos casamentos que não desejavam, pelos maridos que lhes batiam e pelas famílias que as controlavam. Veja-se o que Brunilde diz a Hagen na Canção dos Nibelungos, a propósito de Siegfried: "Sofri por isso muitos males / Pois, por castigo, me macerou o corpo". Mesmo as mulheres da corte eram controladas. Da família às roupas, tudo era opressão. Na corte espanhola de Filipe II a etiqueta era tão apertada que a mulher não podia sorrir ou olhar pela janela sem ser avisada pela camareira-mor das faltas que uma dama da corte não podia cometer. Mesmo as damas de honor tinham quem as vigiasse. Era a guardadama que, tal como as damas de honor, era virgem ou viúva. Nenhuma mulher casada podia servir uma grande dama espanhola. Havia galanteadores oficiais, claro, solteiros ou casados, jovens ou velhos e cujo propósito era tornar a existência daquelas almas, mais suportável. Os galanteadores oficiais podiam ver as damas em ocasiões especiais - quando estas se mostravam fora do palácio. Fora dessas ocasiões, vagueavam pelo exterior do palácio à espera que a dama surgisse à janela e aí estabelecia-se uma comunicação gestual entendida pelos dois apaixonados.

Os homens nobres possuíam terras e combatiam. Quando não havia o que combater, era nobre dedicarem-se a damas. Um cavaleiro sentia-se mais digno de si, se fosse considerado um serviteur d'amour do que um guerrilheiro. Era um jogo ridículo que ambas as partes jogavam muito bem: elas desprezavam-nos, exigiam sacrifícios físicos e provas de amor inimagináveis sem lhes darem garantias do que quer que fosse; eles faziam todos os sacrifícios só para lhes tocarem a orla do vestido e podiam viver uma vida sem ver o seu esforço reconhecido. Debatiam-se com outros homens em duelos, vestidos por vezes somente com a camisa da dama que representavam (elas davam-lhes amuletos que eles penduravam nas lanças e nos cavalos e que, por vezes, vestiam. Chamavam-se faveurs ou emprises d'amour.  Geralmente a camisa era vestida por cima da armadura, mas quando a dama exigia que o cavaleiro fosse só com a camisa para a liça, que remédio! Era morte quase na certa, mas alguns devotos não deixavam fugir um desejo da dama), escreviam-lhes versões e com sorte (ou azar, depende da prespectiva), poderiam ter como horizonte voltar a vê-la, voltar a falar-lhe, se regressassem com vida de batalhas ou das Cruzadas. Não eram relações proibidas, mas antes aceites pelas comunidades e fomentadas até pelos maridos das belas damas, maridos esse que poderiam venerar outra dama, também ela casada. As solteiras eram vistas como fraco investimento. Não era no entanto um jogo sem regras. Havia fases própria que, um cavaleiro que pretendesse dedicar-se a uma dama, tinha de superar. Eram elas:
- Feignaire: primeiro momento em que o cavaleiro não revelava os seus sentimentos;
- Pregaire: segundo momento em que o cavaleiro revelava à dama o que sentia;
- Entendaire: terceiro momento que correspondia à aceitação, por parte da dama, da devoção que o cavaleiro lhe dedicada. Alcançado este estatuto, o cavaleiro tinha de dedicar-se a um período longo em que fornecia provas à sua amada. Após isto e caso esta as aceitasse, o cavaleiro tornava-se seu servieur. Tudo isto estava revestido de aspectos típicos da vassalagem da Idade Média, tanto que a cerimónia em que a dama aceitava o seu servieur e este jurava servi-la, era uma cerimónia pública. Nela, ele ajoelhava-se perante a sua senhora, colocava as mãos como que em oração e ela ía buscá-lo tomando as mãos dele nas suas e beijando-o. A propósito disto, ver Mosche Barasch e o livro "Giotto e a linguagem do Gesto". Entre as provas que o homem tinha de apresentar à dama, estavam - é claro - os versos e as cartas em que a Bela é tratada quase como Nossa Senhora nas Litanias. Ora vejamos:
Litanias da Virgem:
- Espelho da Justiça,
- Vaso espiritual,
- Rosa mística,
- Torre de marfim...
Títulos das damas da Idade Média:
- Espelho do Amor
- Rosa de Maio,
- Fonte de Felicidade,
- Doçura do Mel...

É pois assim que nasce o amor romântico, embora este não tivesse nada do romantismo que hoje conhecemos pois era unilateral e nem sempre havia sentimentos envolvidos a não ser o sentimento de obrigação do homem face à mulher. Com o tempo o amor romântico assim praticado foi tomando outra forma, já que os cavaleiros foram exagerando: por vezes surgiam para os torneios vestidos de forma que tornava impraticável o confronto, como por exemplo, com os olhos vendados ou armados de braceletes de ouro até aos cotovelos. Isto atingiu um tal nível, que em determinado momento, toda esta instituição admitiu a Beiliegen auf Glauben. E o que era isto? Isto era materializar o que até aí era só platónico. A recompensa da Beiliegen consistia em o cavaleiro dormir ao lado da sua dama por uma noite, sem ultrapassar os limites da decência nem colocar em causa a castidade da dama. Mas a gente bem sabe que, quem nunca comeu melaço, quando come se lambuza. E é bem provável que muita gente se lambuzasse. E sabemos também que quando começa a fartura, acaba-se o interesse. Há uma frase óptima para isso que aplico muitas vezes: post coitum, omne animalium triste est (pós coito, o homem é um animal triste). Logo logo os cavaleiros começaram a perceber que aquelas mulheres não eram deusas nem santas e que não mereciam aquela devoção até porque na maior parte dos casos ou eram cruéis, ou devassas.

Com o Renascimento, mais pragmático, o que era platónico tornou-se físico. Numa época aberta ao conhecimento, de que servia este sem a experiência? Desta forma, a veneração da mulher caiu em desuso, sendo recuperada mais tarde em nichos do continente europeu. O amor romântico, em que a mulher tinha os seus admiradores ressurgiu em França no século XVII, mas de forma diferente. É agora no recato do palácio que as damas, as précieuses, recebem os seus admiradores e estes já não têm de desembainhar as suas armas para conquistarem os favores das eleitas. Agora o trabalho é o do intelecto, do espírito, das conversas elevadas. As conversas eram de tal forma esteticizadas que certos termos foram banidos por serem considerados demasiado vulgares. Assim, a palavra "mão" foi substituída por la belle mouvant, a palavra "espelho" foi substituída pela expressão le conseilleur des Grâces e a "cadeira de braços" foi trocada por commodité de la conversation. Entendê-los devia ser impossível...

Este fenómeno voltou a surgir em Génova, no século XVIII com os cicisbeos. Estes eram galanteadores que se ocupavam da dama em causa e de tudo o que lhe dizia respeito: um ajudava-a na rotina matinal, outro acompanhava-a aos ofícios religiosos, outro levava-a a festas, outro tratava da gestão das suas posses... Este hábito generalizou-se de tal forma que todas as mulheres passaram a querer ter o seu cicisbeo e todos os homens desejaram ser um. A diferença entre o cicisbeo e o cavaleiro da Idade Média, é que este último raramente podia gozar da companhia da dama a sós enquanto os primeiros se encontravam sempre com a dama e com a anuência do marido desta. Aliás, quando se discutiam os contratos de casamento, discutia-se e determinava-se também quantos cicisbeos podia uma dama ter enquanto casada. 

Acho que com a Revolução Francesa, que procurou a igualdade e trouxe para a linha da frente da luta política algumas mulheres, esta veneração pelas damas esmoreceu. É que a referida veneração só existia e só tinha razão de existir enquanto a mulher fosse um ser passível, um ser sem opinião, sem gostos. A partir do momento em que a mulher se afirma, de que lhe serve alguém que lhe diga que ela é apreciada, ainda para mais se essa apreciação é paternalista? O que nos interessa que alguém nos aprecie como a um bibelot se nos trata como tal, se não é capaz de discutir ideias, de aceitar as nossas e ver as suas serem discutidas também? Claro que para os homens tudo isto foi sendo, gradualmente, uma grande mudança. Se ao homem já não cabe o papel de protector das damas - papel esse que lhes é/era ensinado desde o berço -, o que lhes cabe? Acho que nem 8 nem 80. Continuem a levar-nos a casa; fica bem. Continuem a oferecer-se para pagarem o primeiro jantar. Também fica bem. Mas não nos respeitem por sermos mulheres. Respeitem-nos porque somos seres humanos.

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...


Eh lá!!!Isto começa a tornar-se um hábito!!! As damas, as mesuras, os cavaleiros...A Beluga faz isto muito bem!!!
Queria perguntar-lhe se fica bem à um cavaleiro pedir o nº de telemóvel à uma dama logo no primeiro encontro?
Assim que tiver tempo, debateremos ideias. Fica prometido...
E como há muito tempo que não lhe faço uma oferenda musical

https://www.youtube.com/watch?v=0K4xIW-JMwE

John Flores

28/11/17 6:50 da manhã  
Blogger Belogue said...

Caro anónimo

Tem fases: há alturas em que apetece escrever sobre determinados assuntos e em outras em que, nem vê-los.

Quanto à pergunta que me coloca, eu não sou entendida na etiqueta da galação, mas tenho "ouvisto" que hoje em dia, quando se parte para o primeiro encontro, já os números de telemóvel estão trocados. Mas caso não estejam - diz-me a minha sensibilidade feminina - que sim, o cavalheiro pode pedir o número de telemóvel à dama no primeiro encontro. Se ela não quiser dar, vai ser evasiva, silenciosa (o silêncio diz muito) e logo o outro lado percebe.

Bom, não tinha nenhuma oferenda musical pensada, mas no seguimento do link enviado, segue este. É de um filme belíssimo que me fez chorar baba e ranho e que, infelizmente - e já escrevi acerca disso no belogue - ficou atrás do Lynch na lista dos 100 melhores filmes do século XXI

https://www.youtube.com/watch?v=vBWCphAu8ik

boa noite, beluga

28/11/17 9:18 da tarde  
Blogger Belogue said...

Desculpe, só agora vi que o anónimo é já um habituée: John Flores

28/11/17 9:19 da tarde  

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