quarta-feira, novembro 29, 2017

- o carteiro -

Li quase tudo que havia para ler do Eça: A Relíquia, Os Maias, A Ilustre Casa de Ramirez, A Cidade e as Serras, O Mandarim, Conde de Abranhos, A Capital, o Crime do Padre Amaro, O Primo Basílio, O Mistério da Estrada de Sintra, os contos, Alves e Cia, e até as Vidas de Santos. De uns gostei (A Relíquia, Os Maias, A Cidade e as Serras), de outros nem por isso (A Ilustre Casa de Ramirez, Mistério da Estrada de Sintra)... Sempre me admirei que não se celebrasse mais a obra de Eça. Sempre me admirei que a maior parte das pessoas com quem privava achasse Eça "uma seca". Eu acho uma delícia e apesar de pensar que um escritor escreve sempre o mesmo livro, não penso isso dos livros do Eça. Poderíamos, é claro, associá-los e categorizá-los:
- Os Maias e a Ilustre Casa de Ramirez - sagas familiares;
- A Capital, O Crime do Padre Amaro e A Relíquia - o tipo que acha que a sociedade o injustiça (neste âmbito A Capital assemelha-se muito às Ilusões Perdidas de Balzac: rapazes da província que se sentem especiais e cujas famílias se endividam para os mandar para a urbe em busca de glória e dinheiro. Os moços não conseguem vencer em parte porque se tornam hedonistas, em parte porque estão formatados para modelos estéticos bacocos, vivem entre o amor de uma prostituta e a protecção de uma grande dama e acabam por regressar sem glória e sem dinheiro ao lar que os viu partir, maldizendo tudo excepto o seu orgulho e preguiça.)
- O Primo Basílio e Madame Bovary de Flaubert (o adultério sob o ponto de vista de uma mulher)

A Cidade e As Serras é porém incomparável com qualquer outro por abordar uma questão que não se prende com a política, nem com as relações amorosas, nem com o talento individual, as questões do génio, a religião, a corrupção... enfim, o que é habitual em Eça. A Cidade e as Serras fala de um certo cansaço que a vida moderna nos causa, fala de um fastio das coisas, de um regresso à natureza, às origens, ao essencial. As serras de que Eça fala no livro existem e estão hoje assinaladas - ainda que pobremente. Num destes dias ali na M581, em Abelhal, de sapatilhas e leggings, fiz-me à estrada para ver os caminhos de Jacinto. Obviamente perdi-me pois ia mal preparada: sem água, telemóvel e com um mapa muito incompleto. Pensei às tantas, entre Sequeiros e Favais, que ali seria um óptimo sítio para ser violada, morta, desmembrada e atirada aos cães agrilhoados a correntes curtas e pesadas. Improvisei xixis no mato, meti-me por caminhos sem saída, perguntei em povoações qual a melhor rota... Em Favais, uma pequena multidão curiosa, abeirou-se de mim e duas senhoras comentavam:
"é pequenina, mas jeitosinha". 
E isto, à falta de um mapa, deu-me vontade de continuar até à EN 108 em Paredes de Cima, seguir para Agrelos e voltar a Enxames, passando ao lado da Fundação Eça de Queirós por falta de cartão de crédito. Muito bem preparada, portanto. O que vi foi um pedaço desses caminhos percorridos por Jacinto - percorridos por Eça, na pessoa de Jacinto. Caminhos em que as ramadas gordas e desordenadas tombam para a estrada e as uvas se esborracham no chão, currais em ruínas de onde de ouve o mugido de uma vaca, casas em locais improváveis e com brasões escaqueirados, pequenos farrapos de cortinas bordadas e voar de uma janela partida, gente muito pobre que espera com avidez a chegada da carrinha do pão, gente muito rica que se protege em casas de revista nos pontos mais altos "das serras", pacotes de "Planta" a fazer de vasos para "Espadas de São Vicente", uma ou outra fonte com o seu fiozinho de água da praxe a chorar na sombra. Enfim, uma delícia. 

12 Comments:

Anonymous Anónimo said...



Sabe, os escuteiros também aprendem...

E.X.

30/11/17 6:23 da manhã  
Blogger Belogue said...

Nunca fui dada ao escutismo...

2/12/17 10:58 da tarde  
Anonymous Anónimo said...


Sabe Beluga, o que eu quis dizer foi que depois de ter vindo ao seu Belogue com vários Nicks, incluindo o E.X. sempre com dificuldade em comunicar consigo, parece que finalmente o sr. John Flores tinha aprendido. Há já algum tempo que andava para dizer-lhe isto e o Eça, sobre quem o E.X. comentou foi a deixa. Desculpe qualquer coisinha. Enfim , em minha defesa poderia dizer que sou um grande solitário, patati,patatá...

E.X. / Jonh Flores.

4/12/17 8:26 da manhã  
Blogger Belogue said...

Caro E.X. / John Flores

Não somos todos?
(tinha muito para contar, mas não posso: agora às 22h a carruagem transforma-se em abóbora e eu volto para a minha vida... "plain").

5/12/17 9:56 da tarde  
Anonymous Anónimo said...


Touché!

Ah!, si c'était le temps...

J.F.

10/12/17 3:50 da manhã  
Anonymous Anónimo said...



Pronto , este senhor tem a mania que escreve francês, grego, latim...

Ah! s'íl était déja le temps...

CR7

11/12/17 1:35 da tarde  
Anonymous Anónimo said...


https://www.youtube.com/watch?v=oLI81WtP-f8


From a secret admirer!

12/12/17 7:36 da manhã  
Blogger Belogue said...

Caro "secret admirer"

Eu é mais isto:
https://www.youtube.com/watch?v=4K5nUJj3ekc

Não acredito que ninguém crie na alegria. Desculpe, talvez seja o mood do momento. Mas agradeço-lhe o link.

Boa noite, beluga

13/12/17 10:08 da tarde  
Anonymous Anónimo said...


Bom dia Beluga.
Desculpe a ausência mas a semana do natal é sempre complicada.
A tristeza é criadora se não durar mais do que o tempo duma canção; e ainda assim haveria muito a dizer sobre os seus frutos. Uma civilização como a nossa em que se acredita que é preciso sofrer para criar está condenada a criar os monstros que nós temos criado.E nem se pode ter a esperança que o fogo que criamos venha a trazer-nos a regeneração ab initio. Será talvez a diferença entre uma civilização que acredita que tudo morre e outra que acredita que tudo nasce ciclicamente. Felizmente há exemplos do último caso e a sua arte é magnífica!!!
Temos matéria prima em bruto. Séculos de romantismo, de surrealismo, de Freud etc..produziram material que só precisa dum mito solar que os organize, já que parecemos completamente inaptos para as subtilezas lunares. O nosso mito central, a estimadíssima liberdade individual, não serve para nada que valha a pena. Talvez o nosso outro mito, o amor...Ah, mas sobre o amor também restam poucas esperanças uma vez que os nossos intelectuais vão para a cama ler :)))).
Jonh Flores, your secret admirer

20/12/17 6:36 da manhã  
Anonymous Anónimo said...


Evidentemente falta-nos um mito clarificador e uma arte que o sirva.
Quanto á ciência, enquanto não fizermos dela uma sabedoria,é apenas um método.

J.F.

20/12/17 7:14 da manhã  
Blogger Belogue said...

Não diga/escreva, isso...
É verdade que o mito do criador sofrido é romântico e mesmo no seu tempo não correspondia à verdade. Mas não foi essa crença que criou os monstros que temos.

Eu acredito no amor. Não posso não acreditar no amor. (apesar do que possam dizer os monstros).

boa noite, beluga

20/12/17 10:37 da tarde  
Anonymous Anónimo said...



Tem razão. O criador sofrido é uma consequência e não uma causa.

J.F.

21/12/17 5:13 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home