segunda-feira, outubro 02, 2017

- o carteiro -

A imagem pode parecer mórbida, mas tendo em conta o nome "Medusa", não podia ser de outra forma. Bem, não vou dizer nada que vocês não tenham já lido por aí. A Medusa era um monstro da mitologia clássica cujo olhar transformava em pedra quem ousasse olhá-la nos olhos. Para matá-la, Perseu teve de usar o seu escudo como espelho para assim não enfrentar o monstro. Bem, também ajudou o capacete que o tornava invisível e as sandálias aladas. Cortou-lhe a cabeça, cujo sangue formou os corais do Mar Vermelho, diz-se. Só uma nota: Perseu teve de matar a Medusa para assim libertar a mãe das garras do rei Polidecto. Pelo menos foi assim que aprendi a história.












Peter Paul Rubens
The Head of Medusa
c. 1617
Kunsthistorisches Museum, Vienna

Perseu era um argonauta; ou seja, embarcou na nau Argo em busca do Velo de Ouro. Ora esta coisa de embarcar numa nau, numa barca, não é apanágio da mitologia clássica. Fê-lo Perseu, fê-lo Ulisses... Às sereias cabe o papel de fazê-los sair de lá. Temos também Caronte... A barca representa, no fim das contas, a passagem. Mas a barca também é algo presente na mitologia nórdica ou até na  pintura do pintor flamengo Bosch que por sua vez terá ido buscar inspiração à literatura e às tradições da Flandres. O louco é o marginal, o alienado, aquele que se comporta fora dos limites do aceitável. E houve de facto, nesta altura, nesta plena Idade Média, uma tendência para alienar os loucos e os doentes mentais da vista daqueles que não o eram. Os loucos eram recolhidos e levados para locais onde a sua loucura era permitida. Isso aconteceu com os leprosos e até, com as pessoas internadas em sanatórios (os sanatórios eram locais relativamente isolados). Na Idade Média a Stultifera Navis era a barca que recolhia todas essas pessoas e que as transportava para locais onde a sua loucura era tolerada, fosse por neles não existirem "não-loucos", fosse por os referidos locais serem geralmente ilhas (A Ilha dos Mortos, de Arnold Bocklin, por exemplo) e daí não existirem vizinhos susceptíveis. O navio dos loucos (título de um livro, também da Idade Média que lista 110 vícios morais e físicos) levava loucos, alienados, alcoólicos e dementes para um local só deles onde esses vícios eram permitidos e cujo nome era, Narragónia. Ora a Narragónia deste livro, é exactamente o País da Cocanha de Brueghel, e a Gozolândia do Brasil; ou seja, esta ideia de que existe um local onde os vícios são permitidos é transversal no tempo e no espaço.

Não será por isso de admirar que é neste epílogo da Idade Média que acontece um dos mais estranhos fenómenos colectivos de que já ouvi falar. Loucos, desde sempre os houve. E isso não era necessariamente mau: vejam-se por exemplo as cortes que não passavam sem o seu séquito de bobos e anões (obviamente os bobos e os anões não eram obrigatoriamente loucos, mas faziam parte daquele conjunto de pessoas que tinham de viver à margem da sociedade, mesmo fazendo parte da corte. É que se o faziam, era para divertirem e não pelas suas qualidades mentais, psicológicas, etc...). Mas sim, de facto os loucos existiam, mas a febre colectiva que tenha levado centenas de pessoas a dançar durante dias até cair para o lado de exaustão, sem motivo aparente, não foi sentido apenas por loucos. Em 1518, em Estrasburgo, cerca de 400 pessoas começaram a dançar até morrerem de exaustão. Tudo começou na semana que antecedeu o Festival dedicado a Maria Madalena que se realizava naquela cidade. Nela, uma mulher conhecida por Frau Troffea iniciou forma voluntária e sem nenhuma razão aparente uma dança que ao fim de um mês já tinha juntado mais de 400 pessoas, sendo que - e uma vez que as mesmas não paravam de dançar - por dia morriam cerca de 15, por exaustão ou por falência cardíaca. O termo usado para descrever este fenómeno - cujo caso aqui descrito não foi um caso isolado na Idade Média, mas é sem dúvida o que melhor documentado está - foi dado por Paracelso. A Dançomania, ou Choreomania, era primeiramente tida como o resultado de práticas médicas erradas e não como fruto da ação do diabo ou da vingança divina. Ao que parece, ao início as pessoas pensavam que Frau Troffea estava a fingir e que a dança era apenas para irritar o marido que detestava dança e ver dançar, mas à medida que a noite avançava e Frau Troffea não parava de dançar, as pessoas começaram a perceber que algo se passava. Pior do que isso, só mesmo a existência de mais pessoas nas mesmas condições, no mesmo "transe" (até hoje não se sabe o que aconteceu para esta dança colectiva e sem um fim que não a morte, ter ocorrido). Podemos dizer que esta dança era uma dança ritual, iniciática, mas mesmo quando isso acontecia na Antiguidade, os participantes ingeriam substâncias que lhes provocavam aquele comportamento. Podemos também dizer que esta dança provinha das danças dos primeiros cristãos que se organizava em círculos e com um padre ao centro. Mas aqui não havia padres nem círculos.
É curioso também observar que o padroeiro dos dançarinos é São Vito. São Vito é igualmente o nome de uma cidade italiana onde Sydenahm escreveu o livro Schedula Monitoria e no qual se aborda a questão da dança de São Vito ou Coreia Reumática de Sydenahm. Trata-se de uma doença neurológica que se expressa nos seus pacientes pelos movimentos espasmódicos e involuntários dos membros superiores e inferiores. Isto, obviamente, não justifica as Dançomanias da Idade Média, uma vez que seria altamente improvável que um grupo de pessoas com esta doença, manifestasse ao mesmo dia, à mesma hora e no mesmo sítio a doença. Para mim, isto é um mistério.