segunda-feira, dezembro 19, 2016

- o carteiro -

quando o ano acaba as pessoas vestem-se de festa e celebram a entrada no novo ano. nunca percebi bem o que celebravam uma vez que o ano, estando a começar, é um incógnita. de qualquer forma é bom saber que há gente optimista. para mim a passagem de ano é "um dia a seguir a outro com uma noite pelo meio". durante o ano há dias - e noites, principalmente - que me deixam mais recordações que a da passagem de ano. claro que entre isto há que distinguir o "fim de ano" do "ano novo": quem celebra o primeiro é porque pensa que o ano foi tão mau que o melhor é mesmo terminar; quem prefere o segundo está focado no que ainda vem e por isso, optimista. ou pelo menos, expectante. Uma das coisas que as pessoas pedem no início do ano - como se a passagem do tempo fosse complacente para com os nossos desejos ou sensível a alterações de calendário na secretaria (para os muçulmanos ainda estamos em 1438) - é amor. Não me vou pronunciar sobre isso. A outra é sorte, dinheiro e muitas vezes por último vem a saúde. O que é uma pena... Este ano que passou, em que a saúde não abundou para estes lados, não podia terminar sem um post a ela dedicado. Nunca pensei dizer isto, mas sem saúde, nada feito. eu que a tenho para dar e vender (prefiro dar que vender) comecei a dar-me conta que muitos dos que me rodeavam, não a têm. Poderemos viver mais anos, mas nunca viveremos para sempre - isto é como os recordes no desporto: tem de existir um limite... - e quase de certeza morreremos com um problema de saúde. Poderemos viver melhor e estamos a caminhar para que a vida seja prolongada em qualidade. Como Ícaro, queremos que o nosso corpo finito viva infintamente, o que não é possível. Acreditamos ainda, e devido à herança e educação judaico-cristã, que Deus manifesta-se nos fenómenos do corpo: ele dá vida, ele tira; ele cura os doentes, ressuscita Lázaro, faz andar os paralíticos. Se Deus tem a possibilidade de contrariar a lei da Natureza quer dizer que só sofre dos males do corpo quem não vive em comunhão com Deus e que Ele faz disso um castigo. Imagino há muitos séculos atrás as doenças que por aí havia, algumas delas perfeitamente evitáveis. Nesse mundo sem higiene, salobro, uma ferida podia transformar-se na senhora morte. Doenças como a lepra, o escorbuto, a peste bubónica... eram de tal forma fatais que havia registo delas na arte (que sim, tinha um lado prático).

A lepra, ou Hanseníase, por exemplo, era uma das doenças que mais se associava com pecado, com a condenação divina exactamente por causa das deformações que provocava. Desfigurava de tal forma quem dela padecia que de facto só podia ser um castigo divino por algum pecado cometido pelo doente ou pelos que lhe deram vida. Ficou retratada em algumas obras de arte (não muitas) e sempre da mesma forma: como se o doente tivesse sarampo. O primeiro deverá ter sido Job cuja doença Deus permitiu através de Satanás. Em algumas representações Job encontra-se a raspar as feridas e Satanás a respirara sobre ele, deixando assim a perceber a importância da teoria miasmática que defendia que os maus ares eram responsáveis pela propagação da doença e que vinha directamente das fontes médicas do Cristianismo primitivo: Hipócrates e Galeno. Este tipo de medicina era baseada na teoria dos humores do corpo humano, dos elementos, bem como dos mapas astrológicos. As doenças, esta e outras, eram curadas com ervas, cuja adequação dependia também dos elementos da própria; ou seja, era tudo pouco científico. Um dos episódios mais conhecidos é o do Imperador Constantino que padecia desta doença. Consultando os sábios, este disseram-lhe que o remédio estaria no banho em sangue de três mil inocentes, mil crianças. O Imperador não aceitou esse tipo de cura e acabou por ser curado por São Silvestre que lhe apareceu em sonhos. Esta terá sido uma das razões para a conversão de Constantino ao Cristianismo. A outra, digo eu, deverá ter sido os benefícios políticos que isso lhe trazia. De qualquer forma, com o avançar da Idade Média e a noção de caritas cristã, a doença - fosse ela a lepra ou não - passou a ser mais alargada e estabeleceu-se a separação entre doença e pobreza. Surgem os primeiros hospitais, os banhos tornam-se mais comuns. E com o avançar do tempo e as Descobertas, a doença também se expandiu tendo sido por isso criados milhares de leprosários.

















Gregório, o Grande
Morals on the Book of Job
Século XII






















Gospel Book of Otto III
Constantin Prepares to Kill the Innocents
1246
Santi Quattro Coronati, Chapel of Saint Sylvester


















Gospel Book of Otto III
Constantin Prepares to Kill the Innocents (pormenor)
1246
Santi Quattro Coronati, Chapel of Saint Sylvester


















Matthias Grunewald
The Temptation of Saint Anthony
1512-1516
Musée d'Underlinden, Colmar

















Matthias Grunewald
The Temptation of Saint Anthony (pormenor)
1512-1516
Musée d'Underlinden, Colmar

A peste bubónica foi talvez a doença mais representada na arte, uma vez que teve efeitos nefastos na Europa matando, em três anos, cerca de 43 milhões de pessoas (mais de 25% da população da Europa) e diminuindo a idade média dos 35 para os 20 anos. O tempo em que falo é o dos meados do século XIV, quando a Igreja já estava mais próxima dos doentes e prestava auxílio mesmo em caso de doenças contagiosas. Estima-se que nessa altura a taxa de mortalidade entre padres tenha atingido os 90%. O termo Peste era aplicado genericamente, a este tipo de doenças que matava um grande número de pessoas em pouco tempo, e que parecia difícil de controlar. Acreditava-se que era transmitida pelo ar, mas a verdade é que não era uma doença oriunda da Europa - antes da China - e transmitia-se através de roedores e moscas. Como a China era um país muito movimentado, já com trocas comerciais com a Itália, foi uma questão de tempo (pouco tempo) até a doença chegar de barco aos portos da Sicília e daí para o resto da Europa. Chegou mesmo a Inglaterra. Chama-se a Peste Negra, devido aos bubões negros deixados no corpo dos doentes, como o prova a imagem abaixo. No Inverno a doença parecia fazer menos vítimas, uma vez que havia menos moscas, mas na Primavera começava tudo outra vez e assim foi durante pelo menos os três anos entre 1347 e 1350. Só por volta de 1600 a doença foi dirimida da Europa. Mais uma vez a Medicina falhou, o que era natural. Em 1348 o Rei Filipe VI de França ordenou o estudo para as causas da Peste: acreditava-se que sabendo as causas seria mais fácil eliminar a doença. Mas as causas eram muito... etéreas: um equinócio, um alinhamento de Saturno, Júpiter e Marte em Aquário e um eclipse lunar!

















Tintoretto
St Roch in the Hospital
1549
San Rocco, Veneza



















Tintoretto
St Roch in the Hospital (pormenor)
1549
San Rocco, Veneza

A sífilis, doença venérea, era também conhecida por "morbus gallicus" ou "doença francesa", já que o primeiro surto na Europa, mais precisamente em Itália, surge durante a invasão francesa do final do século XV. Como se acreditava que tinham sido os franceses a espalhar a doença, deu-se o nome de "morbus gallicus". Mais tarde um físico e astrónomo chamado Girolamo Fracastoro que escreveu um poema épico sobre um rapaz chamado Syphillus. Esta doença já existia na América antes de Colombo lá chegar. Mas também não se pode dizer que foi o intercâmbio com a América que trouxe a doença para a Europa já que ela pode ter sempre existido, mas ter experienciado uma mutação que a tornou activa. No Renascimento, com a difusão da imprensa, havia uma consciencialização para a doença, ainda que do ponto de vista moral. Veja-se a gravura de Sebastien Brandt " Saint Mary and the Holy Child punishing the sufferers of syphilis" que ilustrava um tratado de Joseph Grunpeck sobre sífilis, astronomia e, pelos vistos, religião. No século XVII a doença começou a ser vista não só como um mal contagioso, mas também como uma fatalidade, como um fenómeno social. Também passou de um problema epidémico para um problema endémico. Sendo uma doença venérea, foi alvo do interesse dos artistas pois servia vários propósitos: podia ser um tema moralizante, podia ser jocoso para com os hábitos privados, podia ser usado para fazer crítica política. No entanto, este interesse é limitado pelas ideias ainda em vigor e que defendiam que a mulher era a principal interveniente na sedução, como se por existir já estivesse a pecar. Faz-me lembrar que aquele que corrompe é tão culpado como aquele que é corrompido. Mas,... quem sou eu... No século XVIII as coisas mudam um pouco, com artistas como Hogarth a expôr, através das caricaturas, uma sociedade sem moral ou valores, onde dinheiro e sexo vinham antes de amor. Hogarth coloca as "culpas" onde elas devem estar: nos dois lados. Através de quadros aparentemente inocentes, Hogarth conta a história de casais que se traem, que se infectam, que vivem sem decoro, contenção ou moral. Mas este aparente avanço, não surte o efeito desejado, já que o século XIX viu surgir novamente uma certa culpabilização da mulher no aparecimento e propagação da doença. Os cabarés, a vida boémia de bairro... tudo isso potenciou o aparecimento de mais prostíbulos, levou mais mulheres à prostituição e por isso, o número de pessoas contagiadas aumentou. Identificar a sífilis nos quadros é fácil: procurem pintas negras.

















Sebastien Brandt 
Saint Mary and the Holy Child punishing the sufferers of syphilis
1496















William Hogarth
Marriage à la Mode
 1743
National Gallery, Londres

 








William Hogarth
Marriage à la Mode (pormenor)
1743
National Gallery, Londres















William Hogarth
The Orgy
c. 1735
Sir John Soane's Museum, Londres












William Hogarth
The Orgy (pormenor)
c. 1735
Sir John Soane's Museum, Londres 


Varíola
No que diz respeito à varíola, vocês vão dizer que nem sequer é perigoso, que já ninguém tem... Agora já ninguém tem, mas houve uma altura em que qualquer pessoa podia ter e morrer de varíola. Não era necessário ser rico para escapar. Veja-se o retrato de Ferdinando II, um retrato raro não só por se tratar do retrato de um homem doente, mas também por esse homem ser membro da família Medicis e por fim, por estar quase desfigurado. É de facto um achado:


















Justus Sustermans
Portrait of Ferdinando II de' Medici
1626
Galleria Palatina (Palazzo Pitti), Florença

Há evidências da existência de varíola no Antigo Egipto: marcas em múmias, como a do faraó Ramses V, mostraram ser semelhantes às da varíola. A doença foi contraída por mercadores que depois acabaram por espalhá-la pelos locais por onde passavam, principalmente a zona do Mediterrâneo e a China. Na Europa chegou ao Império Romano matando cerca de 7 milhões de pessoas, o que era muito para a época (cerca de 180 A.C.). [Todos os dias havia cerca de 10.000 pessoas contaminadas!] Pode mesmo dizer-se que o Império deve parte da sua queda à varíola: o exército sucumbiu à doença e o Imperador Marco Aurélio (também ele uma vítima da varíola) decretou o recurso a mercenários que exploraram Roma até ao tutano e levaram à ruína do Império. Mais tarde, e na Europa, a varíola alterou o curso das linhas de sucessão: o rei Luís I de Espanha, o imperador austríaco José I, o Czar Pedro II da Rússia, a rainha Ulrika Eleanora da Suécia, o príncipe William, herdeiro dos Stuart... enfim... todos eles mortos devido à varíola. Até a Pocahontas, vejam lá! A varíola foi levada depois para o Novo Mundo, graças à acção dos navegadores, mas foi no outro lado do Oceano que a grande transformação se deu. Lembram-se de Mitríades, o rei que tomam pequenas doses de veneno para ficar imune ao mesmo. Pois é, foi na Ásia que essa técnica foi adaptada à varíola: os doentes eram inoculados com o vírus e acabavam por contrair uma variação mais suave da doença. Não me perguntem muito bem como era isto possível. Li sobre pústulas e coisas assim, mas mesmo assim não percebi. Sei que há pouco tempo esta polémica andava no ar e que alguns pais preferiam expôr os filhos aos riscos "controlados" da doença tornando-as imunes, do que deixar que as mesmas fossem vacinadas. 

















Giulio Monteverde 
Edward Jenner inoculating his son with the smallpox vaccine,
Palazzo Bianco, Génova

A história da Cólera começa nas águas do Ganges, fundamental para o hinduísmo, local de partilha e fonte de água para os indianos. As águas do Ganges serviam para beber, para tomar banho, lavar a roupa e levar a cabo rituais religiosos. Talvez por isso esse tenha sido o berço da bactéria que dá origem à cólera. De facto, as primeiras epidemias de cólera tiveram lugar nas povoações das margens do Ganges, antes de 1817. Já em 400 A.C. havia registos de uma doença cujos sintomas eram muito semelhantes aos da cólera: lábios azulados, face encovada, olhos pisados, negros, diarreia... Enquanto a cólera fazia as suas vítimas ao longo das margens do Ganges, os médicos europeus permaneciam na ignorância quanto à existência da doença. Só que a partir de 1817 a Inglaterra começou a colonizar a Índia, o que implicou a deslocação, para território indiano, de soldados, mercadores, etc. No final do século XIX os médicos europeus começaram a ver os primeiros casos da doença. Da Europa a cólera viajou até à América do Norte e entre 1833 e 1834 atacou as principais cidades americanas. Em 1839 e através dos soldados britânicos, a cólera chegou até ao Afeganistão e um ano depois, à China.













Mulher vienense de 23 anos representada antes e depois de contrair cólera em 1831. A segunda imagem mostra a mulher uma hora após ter contraído a doença. A jovem morreu quatro horas após ter ficado infectada.

Para quem acredita na vida além da morte, nada disto assusta e pode mesmo ser encarado como um meio e não o princípio do fim. Para quem não acredita aconselho a leitura destes dois livros:


































este poema.(o cancro, sempre o cancro...)